sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

NATAL NAS TRINCHEIRAS





A única coisa que separava os dois exércitos, naquela noite fria de Dezembro de 1914, era um pedaço de terra lamacenta chamado Terra de Ninguém. De repente, um cântico rompeu o ar gelado, celebrando o Natal em alemão, e logo um outro se lhe seguiu, em inglês.
Durante algum tempo, os inimigos deixaram de se guerrear e comportaram-se como amigos. Estima-se que, nesta trégua de Natal não oficial, participaram cerca de cem mil soldados.
Foi um momento único na história da humanidade.
Os presentes tinham sido abertos e o jantar acabara. Depois de um longo passeio pelos campos cobertos de neve, o jovem Thomas aconchegou-se junto do avô e disse:
— Avô, este Natal foi o meu preferido. E tu, tens algum Natal favorito?
— Tenho, Thomas — respondeu o avô Francis. — Passei-o muito longe de casa, durante o primeiro Inverno da Grande Guerra.
— Estiveste na guerra, avô? — perguntou a pequena Nora, subindo para o colo dele. — Foste um herói?
O avô sorriu e sugeriu:
— E se começássemos pelo princípio?
As duas crianças aproximaram-se ainda mais dele.
— Foi em 1914. Os meus companheiros e eu estávamos há já várias semanas no campo de batalha. Sentíamo-nos sozinhos e assustados, embora tentássemos ser corajosos. Tínhamos passado um mês longo e frio em trincheiras lamacentas, que eram, naquela altura, a nossa casa.
Sabíamos que não haveria tréguas no combate e que passaríamos o Natal ali mesmo. Aquela véspera de Natal aconteceu numa noite igual à de hoje. Os céus estavam a clarear e a geada cobria a Terra de Ninguém, o campo que nos separava dos soldados alemães.
E ali estávamos nós, diante das trincheiras inimigas, à espera… Aparte as bombas e as batalhas, a guerra consiste em esperar. Esperar para ver quem vai dar o próximo passo.
Nessa noite, sentimos que iam ser os Alemães. E tínhamos razão. De repente, uma sentinela fez sinal a pedir silêncio e ficámos todos calados.
Foi então que um som rasgou o frio da noite gelada.
O som provinha do lado inimigo da Terra de Ninguém e um soldado inglês que sabia alemão disse tratar-se de um cântico de Natal. Em breve, todos os Alemães entoavam a mesma canção. Quando terminaram, decidimos responder-lhes com um cântico de Natal que todos conhecíamos.
Depois, os Alemães entoaram ―Noite Feliz‖, ao qual nos juntámos, com a letra cantada em inglês. Foi como se a terra inteira entoasse o mesmo cântico… Nunca pensei que cantar fosse tão sagrado. De repente, a sentinela de vigia gritou:
— Aproxima-se alguém!
E, enquanto apontávamos as espingardas à escuridão de Dezembro, deparámos com algo de extraordinário. Uma figura vinha até nós através da Terra de Ninguém. Numa mão trazia uma bandeira branca, e na outra uma árvore de Natal cheia de velinhas. Era um gesto tão surpreendente e corajoso que não pude deixar de saltar da trincheira e de ir ter com aquele soldado.
Fui o primeiro de muitos. Em breve, todos os soldados de ambos os lados se encontravam fora das trincheiras. Era tudo tão novo e estranho que, no início, estávamos nervosos. Passado pouco tempo, porém, trocávamos já pequenas lembranças – chocolates, conservas de carne, tudo o que pudéssemos partilhar. Quando mostrámos uns aos outros fotografias de casa e da família, deixámos de ser soldados e de ser inimigos. Éramos apenas filhos e pais, longe da família e de casa.
Um dos nossos rapazes trouxe um acordeão e um dos deles começou a tocar violino. E acabámos por improvisar… um baile. Foi uma bela festa de Natal! Mas a alvorada em breve nos anunciou que tínhamos de regressar. Regressar às trincheiras, voltar a esperar. Pensar no que nos tinha acontecido e em qual seria o nosso próximo passo.
Esta é minha recordação favorita de Natal. Hoje sou um homem diferente por causa do rapaz que fui naquela noite.
O avô abraçou os netos com força.
— Será que fui um herói? Penso que, naquela noite, todos fomos heróis.



NOTA HISTÓRICA


Embora este conto seja um relato ficcional, a trégua de Natal de 1914 foi um facto histórico, e teve lugar na linha de batalha entre a costa da Bélgica, a norte, e a fronteira da Suíça, a sul.
Quatro meses antes, no início da Grande Guerra, como a Primeira Guerra Mundial ficou conhecida, milhões de homens por toda a Europa tinham-se alistado em resposta aos apelos dos seus líderes. Muitos achavam que a guerra seria curta e que estaria terminada no Natal. Mas, quando o Inverno começou, milhares de soldados tinham já sido mortos ou feridos e a dura realidade do campo de batalha impôs-se.
Em Dezembro de 1914, as Forças Aliadas (Bélgica, França, e Inglaterra) estavam num impasse com os Alemães, cada um dos lados à espera de que o outro capitulasse. As tropas estavam protegidas por trincheiras cavadas à pressa. Estas valas estreitas, embora mais fundas do que a altura dos soldados, eram parca protecção para o frio invernal.
Entre os dois exércitos havia uma extensão de terreno árido chamada Terra de Ninguém, mais larga do que dois campos de futebol juntos. Nalguns sítios, porém, o intervalo entre as duas facções não excedia os 30 metros. Nestes locais, os inimigos estavam tão perto que conseguiam ouvir-se falar.
Assim tão perto, muito terão pensado no aspecto que teria o inimigo. Estariam satisfeitos por se encontrarem naqueles buracos húmidos, a lutar em nome do Kaiser ou do Rei, ou prefeririam estar em casa? À medida que se aproximava a véspera de Natal, muitos soldados devem ter pensado em casa e na paz. Alguns tinham recebido encomendas da família com ofertas festivas. As próprias famílias reais da Alemanha e da Inglaterra tinham enviado prendas para as suas tropas e a Alemanha tinha mesmo enviado árvores de Natal para os homens que combatiam na frente.
Naquela noite, foram muitos os que quiseram parar de lutar, por breves horas que fosse. Alguns chegaram mesmo a fazer o relato desse evento em diários e cartas.
John McCutcheon; Henri Sørensen
Christmas in the trenches
Atlanta, Peachtree Publishers, 2006
(Tradução e adaptação)